segunda-feira, agosto 15, 2016

Retiro

Eu só precisava de alguns dias de paz, sozinha, sem precisar dividir opiniões ou decisões. Segui então a sugestão da minha mãe e reservei quatro diárias em uma pousada perdida no meio do nada e, para a preocupação ser a menor possível, paguei logo 20% adiantado e já inclui o serviço de transporte.

Ainda em São Paulo, cheguei no ponto de encontro e esperei. Aos poucos, meus companheiros de transporte começaram a chegar e eu, me sentindo cada vez mais perto dos tão sonhados dias de tranquilidade, só queria ser invisível.

Os livros na minha bolsa de pano pesavam bastante e eu só conseguia me sentir ansiosa por finalmente dispor de tempo para enfrentar todos os pesos que estava levando comigo naquela viagem. Considerando que começar pelo peso dos livros seria menos assustador, retirei o primeiro da bolsa e pedi um café para acompanhar. Começar a ler naquele momento fazia parte da minha estratégia, assim todos ali já assumiriam que a vaga de antissocial do grupo já estaria ocupada. 

Ao abrir a capa e continuar a leitura de onde tinha parado (se é que estar na segunda página conta alguma coisa), ouvi uma voz desconhecida tentando me conhecer. 
Eu só queria sumir.
Era uma mulher de mais ou menos 45 anos, talvez menos, mas aparentando mais; estava "acima do peso" e tinha cabelos desajeitados. O fato de ela ter ignorado a minha leitura me irritou muito porque quando alguém faz isso, só pode significar que a pessoa não tem empatia alguma para entender o verdadeiro motivo que leva algumas pessoas a lerem em público.

Acho incrível como algumas pessoas não captam ou simplesmente ignoram/desafiam alguns sinais bem óbvios (livro aberto ou fones de ouvido, por exemplo). Mesmo assim, respirei fundo e fui simpática ao responder o meu nome, porque imaginei que ela talvez só fosse uma pessoa insegura ou bastante sociável. Grande erro.

Após 2h30, finalmente chegamos. Tomei uma sopa de inhame a contragosto e parti para o meu quarto com uma caneca de chá na mão e meu livro na outra. Apesar de estar escuro, a vista do quarto era linda e a cama, de casal. Um dos motivos de ter decidido ficar uns dias reclusa tinha a ver com a necessidade de tirar o ex da cabeça de vez. A cama de casal ali, só para mim, fez meu peito doer um pouco.

No dia seguinte, acordei no meu tempo e, após ignorar o despertador várias vezes, finalmente conseguir levantar em meio ao frio para tomar um banho quente. Coloquei uma roupa confortável e passei o básico de maquiagem. "Melhor estar preparada", pensei. Incrível como demorou para desligar e aceitar a proposta que eu mesma tinha feito.

Caminhei sem muita empolgação até o salão de café da manhã sabendo que não teria nenhum pão de queijo ou bolo de cenoura com calda de chocolate esperando por mim. Com o livro grosso embaixo do braço, me servi de alguns pedaços de fruta e uma fatia de pão integral com mel. "Poderia ser pior", pensei. Não demorou cinco segundos para que eu me arrependesse de ter me permitido pensar a última frase.

Com o livro aberto e a xícara de chá quente a minha frente, via a mulher entrona pendurando seu casaco na cadeira em frente a minha sem me dirigir a palavra e em seguida foi logo em direção ao aparador para se servir. Revirei os olhos sem pudor e analisei rapidamente o meu prato, rezando para que faltasse pouco para terminar e assim usar isso como justificativa para não ficar e poder ler o meu livro em paz em qualquer outro lugar. 
Eu juro que não queria parecer tão má e antissocial, ainda mais escrevendo agora que tudo já passou. Mas, na hora, me senti extremamente invadida e desrespeitada. Acho que nessas horas o estado de espírito conta muito. De qualquer jeito, ainda faltava metade da fatia de pão e 2/3 da xícara de chá. "Merda". Nunca consegui conter os palavrões mentais muito bem.

Enquanto ela voltava devagar, comecei a me perguntar se aquilo que eu sentia não seria algum tipo de fobia por pessoas desconhecidas ou se não seria apenas sintoma de uma rotina envolta por pessoas conhecidas demais. E o mais bizarro é que eu não queria tratá-la mal e, por isso, novamente, respirei fundo, sorri e cedi quando ela perguntou se poderia sentar ali, apesar de já ter se apropriado do lugar muito antes.

E assim o dia passou. Eu tentando ler, me esgueirando pela pousada em busca de locais seguros e sossegados enquanto passava grande parte do tempo fugindo da mulher entrona que, de um jeito ou de outro, acabava me encontrando. Naquela tarde, considerei se não valeria mais a pena voltar para São Paulo e aceitar que ter pelo menos alguns dias de introspecção e descanso não fazia parte da minha sina. 

Eu estava simplesmente odiando não conseguir encontrar um jeito de fazer a mulher entrona se tocar. Porque o problema não era a idade, peso ou gênero dela. O problema era a insistência e falta de sensibilidade. Era o casaco pendurado do outro lado da mesa sem perguntar se podia, era me perguntar o que eu estudava ou se namorava sem ligar para a possibilidade desse tipo de conversa, naquele momento, estar proibida. Perguntas trocadas e erradas levaram a uma grande e mal educada antipatia.

Claro que me sinti mal por isso, por ela. 
Pensei várias vezes em como do mesmo jeito que tenho pessoas muito queridas em minha vida, ela provavelmente também era querida por alguém. E mesmo assim, eu não sentia a menor curiosidade em conhecê-la. Fiquei triste por mim e comecei a me culpar. Sou uma pessoa séria, mas não sou má. 

Passei a me esforçar para ser mais simpática, perguntei uma ou duas coisas para ver se ela poderia, quem sabe, se tornar uma pessoa querida por mim também. Então, numa tarde fria do terceiro dia, percebi. Por que eu tinha que ser obrigada a virar amiga de viagem dela se o meu principal objetivo ali era reclusão absoluta para pensar e conseguir respirar? Por que eu precisava ter empatia por ela se ela, em nenhum segundo, teve empatia por mim? 

Como disse, não sou uma pessoa má. Por isso, precisava pensar em um jeito de dizer para ela que estava incomodada, mas sem magoá-la. Como fazer isso? E mais: precisava ser rápido porque já estava me sentindo muito sufocada e a viagem, no fim. 

Na manhã seguinte acordei um pouco mais tarde para já pegar o café da manhã no final. Quando sai do quarto, vi a mulher sentada no hall que ligava os quartos ao salão de café da manhã. 

Suspirei e rezei para que alguma sabedoria matinal me iluminasse. 

Ela olhou para mim e disse sorrindo: 

- Pensei que você não viria mais. Estava te esperando para tomarmos café da manhã juntas.

Respirei fundo mais uma vez e fui caminhando em direção a ela. Sentei ao seu lado no banco de madeira perto da lareira acesa e disse com muita sinceridade e da forma mais amável que consegui:

- Anne, nós não somos amigas... Vim para cá buscando tranquilidade porque passei por um semestre difícil. Eu gosto de você, mas vim para cá para ficar em silêncio, entende? Não quero te magoar, mas realmente preciso do meu espaço. Entendo se você ficar chateada e pensar que sou antisocial, mas não posso abrir mão do objetivo que me trouxe aqui. 

Ela apoiou a mão direita na minha perna levemente, levantou e consentiu com a cabeça enquanto sorria. 

Não nos falamos mais até o último dia quando nos despedimos em São Paulo.

- Obrigada por entender. 

Ela consentiu com a cabeça pela última vez e entrou em seu carro.