sábado, abril 06, 2019

Cigarro

Ana sentia falta de Olavo.

Voltar para o Brasil para arrumar a papelada deixada por sua avó a fizera revisitar não somente sua família, mas a rotina que por tanto tempo amou. Caminhar pelas ruas arborizadas do seu antigo bairro fazia Ana querer fechar os olhos e sentir a mão de Theo segurando a sua novamente, como nos velhos tempos.

O caminho até o metrô continuava o mesmo, esburacado, cheio de subidas e descidas. O Sol, que há tempos não a encontrava em Moscou, agora estava ali, acariciando o rosto de Ana enquanto ela se permitia enfim fechar os olhos, só por alguns segundos, até o semáforo fechar para os carros apressados de São Paulo.

Ficaria um mês naquela cidade e há uma semana já sentia Olavo distante, limitado a conversas rápidas e superficiais, trocadas rapidamente após um longo dia de trabalho. Existia dentro dela uma necessidade estranha de dividir tudo com ele e, realmente, lamentar sua ausência naquele momento. Era frustrante não poder faze-lo simplesmente compreender completamente o dia a dia que sempre fez tanto sentido para ela.

Foi então caminhando pela rua conhecida quando virou à esquerda numa viela estreita, porém movimentada. A mão cheia de anéis foi passeando levemente pelo muro branco e sujo do cemitério que a acompanhava pelo quarteirão, até que finalmente se permitiu olhar para a esquina do lado oposto da rua.

Lá estava o bar onde se conheceram. Theo estava tão feliz, novinho, recém aprovado na faculdade. Ela lembrava nitidamente da energia que tinha para sair em plena sexta após um longo dia de trabalho. Lembrava também de Marcela e da saia de pano que sempre usava quando se encontravam para sambar. Lembrava principalmente do copo americano cheio de cerveja gelada e do momento em que quase o deixara cair quando Theo finalmente teve coragem de chamá-la para dançar. Naquele momento, ela segurou o copo o mais firme que pôde, com as pontas dos dedos um pouco suados. Eles eram tão novos, pensava ela de forma saudosa.

Anos depois, naquela esquina, lá estava ela, parada com uma pasta cheia de documentos embaixo do braço. O dia estava quente e o bar, fechado. Dava para ver que não tinha fechado de vez e, por um segundo, se sentiu maluca por considerar voltar mais tarde - só para ver se as coisas continuavam as mesmas e, se de repente, Theo ainda estaria por ali. Em sua fantasia, não via Olavo, apenas Theo e, no mesmo instante, se culpou. Sentiu falta das suas mãos conduzindo a dança, da troca de olhares que dispensavam qualquer tentativa de conversa em meio à música alta. Sentiu falta do poder que ela sabia exercer sobre ele, mas também da segurança que sentia quando apoiava a cabeça em seu ombro. Será que ele estaria ali?

Lembrou de uma noite em que ele estava naquela calçada, sentado com um cigarro na mão. Segurava-o apontado para cima, analisando cada aspecto daquele objeto branco e amarelo cheio de nicotina. Por um segundo, se perguntou se ele ainda fazia aquilo - olhar para algo banal de forma profunda, claramente pensando em outra coisa. Naquela noite, ele estava pensando sobre a morte.

A princípio, Ana achava que tudo aquilo era só "tipo" e que Theo falava daquelas coisas porque sabia que ela gostava de refletir sobre assuntos como aquele, profundos. Lembrou de segurar a saia enquanto sentava ao seu lado e, um pouco antes de perguntar se ele pensava na morte por causa do cigarro, decidiu simplesmente não falar nada. Em vez disso, olhou para ele com a cabeça inclinada e sorriu sem mostrar os dentes. Ele entendeu e acendeu o cigarro, agora apoiando os braços nos joelhos dobrados.

Depois disso, viveram juntos uma história bonita e muitas vezes até clichê, com tardes tranquilas dormidas no sofá da sala, noites intensas esquecidas num cinema qualquer do Centro. Mas com o tempo, o jeito como Theo olhava para aquele cigarro e pensava na morte passou a substituir o modo como ele olhava para ela enquanto dançavam, quando palavras não eram necessárias.

Num sobressalto voltou ao presente e decidiu caminhar, relutante.

Foi aos poucos se afastando da esquina como alguém que não quer que o tempo passe assim que o final de semana começa. Sentia que se afastar do bar traria de volta os últimos momentos tempestuosos da sua relação, os sumiços, as frases curtas, a traição. Aos poucos, porém, foi desapegando da ideia de Theo e passou a construir de forma simples e natural a linha do tempo até aquele momento, com Clara, Olavo, em Moscou.

Terminou sua caminhada e entrou no metrô. Olhava os documentos e pensava na sua casa, na falta de Sol, no calor do edredom que ela tanto gostava de abraçar nos dias frios. A Rússia, sem dúvida, não era como o Brasil, mas nenhuma parte dela despertava a dor e a falta de Theo que últimos momentos trouxeram.

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